Desde o inicio da leitura do romance-ideia de Paulo Leminski, já me encontrei absorta, não simplesmente por ser escritos Leminskianos e eu apresentar certo encanto, e sim pela notável elaboração do jogo e sedução das palavras, sentimentos, pensamentos, incertezas, novidade, todos liquidificados em uma só hipnose. Dando mérito a esse escritor curitibano que se entregou de corpo e alma na elaboração do Catatau, tornando-o sua ideia de vida, sua própria vida. Catatau teve origem num relance de ideias de Paulo Leminski em uma aula de história sobre as Invasões Holandesas no nordeste brasileiro, onde tinha-se a presença de cientistas, cartógrafos nas tropas aqui estabelecidas. Foi então, de súbito em 1966 que o escritor lembrou-se de René Descartes e imaginou como seria se esse francês, que representava o pensamento cartesiano e analítico ocidental, estivesse aqui sob ares tropicais? Parou a aula e anotou sua ideia. A transformou primeiramente em um conto “Descartes com lentes”, e com o engano entre os ganhadores do I Concurso de conto do Paraná ganhou forma de romance-ideia, uma mistura de prosa-poesia, que tomaram quase dez anos de dedicação do escritor, foi publicado em 1975.
Catatau, estruturado em um único parágrafo busca contar como seria esse feito. Renatus Cartesius filósofo encontra-se na selva brasileira, carregando uma luneta (símbolo cientifico, racional) e um cachimbo de ervas (símbolo da alucinação tropical) assustado e incomodado com a nova “realidade” que se encontra, com o seu “ser” que cria-se. Espera o seu guia, um nobre polonês Krzysztof Arciszewski, que demora vir, assim como os esclarecimentos e explicações que também espera. Nada acontece, e desse modo inerte é que a linguagem acelera, avança e acontece. Catatau é uma obra que transcendesse o valor e sentimento sobre a linguagem. Essa que mundifica e cria o homem.
Tom presente desde o início da literatura brasileira, com destaque na escola estilística Barroca, que definiu não só um estilo de arte como o complexo cultural. Sem se ater a dados históricos e resumos de leituras ou obra (porque nem possível isso seria), vou comentar a respeito dessa escola e sua transposição na contemporaneidade.
Tomado pela confusão e o sentimento do novo (língua, clima, culinária, costumes, geografia, medos, amores, alegrias, angustias) o colono viu-se dividido entre sua origem civilizadora e o complexo cultural que se encontrava aqui no Brasil. Eis que renasce um novo homem miscigenado linguisticamente e culturalmente, com uma “nova” concepção de vida, um olhar profundo sobre a realidade que o cerca. Entremeado por essa incógnita pontiaguda e sentimento de contra-conquista mostrou-se necessário revelar, reafirmar e verbalizar o seu “ser”. Sejam nas notas tocadas, quadros, construções, os sopros da voz cantada, ou no corte da tinta sob o papel.
Todo esse contexto incrivelmente vem se repetindo, o homem cada vez mais se depara com o novo e com a incógnita de reafirmar o seu ser. Evidenciamos isso nos anos 60 e seus subsequentes aqui no Brasil, onde o espírito de vanguarda e tropicalismo toma-se presente. Marca, movimenta e reafirma o novo sentir, expressar e imaginar através das artes, música, pintura e principalmente na literatura. È imergido nesses ares que surge Paulo Leminski e o seu Catatau. E assim desde o seu contexto que essa obra apresenta vestígios barrocos. Catatau é um delírio experimental, conduzido por Renatus Cartesius, Occam e sua visão do paradisíaco tropical do séc. XVII no Brasil.
A contemplação do desvario inicia-se já com a tropicalização do nome do filósofo René Descartes e a suposta ideia de sua estada no Brasil no séc. XVII, um filósofo europeu com seus pensamentos cartesianos, emergido em um caloroso mar de sensações tropicais/dionisíacas. O duelo entre os opostos evidencia-se desde a caracterização do personagem e em todo o decorrer da leitura. É o duelo entre a o pensamento cartesiano europeu e o alucinógeno tropical, entre a presença de pensamentos e ausência de entendimento, entre a espera de compreensão do personagem e do leitor, entre o olhar e o pensamento, entre a linguagem popular e a filosofia, duelo linguístico, polissêmico, signico e sensorial.
Perdida a tanta disputa de alucinação que nem sei para onde apontar o meu primeiro olhar, minha imaginação. Talvez esse seja o meu começo, como o de Cartesius que olha alucinação que o cerca. Olhar o Catatau dentro das coisas e não fora delas. E essa questão de olhar destaca-se de maneira ilustre em todo o romance-ideia. Como se os olhos fossem meio de potencialização e percepção de uma nova criação, de uma nova construção do real. Onde o olhar é a própria epigrafe, os olhos são as palavras que fragmentam, transformam e suspeitam a realidade. Tida Carvalho destaca em “O Catatau de Paulo Leminski – (des)coordenadas cartesianas”:
Aqui o visível se põe a ver e se vê vendo. Parece que, numa inversão irônica, de tanto ver, de tanto olhar e mirar-se, o excesso de reflexão e racionalidade resulta em desvario. Há como que uma promiscuidade entre o visível e o que olha (e o que se sente olha(n)do). O sujeito do olhar é também o objeto do visto. O que contempla é absorvido pelo que contempla, e nesse ato de contemplação abismal, vê-se o próprio reflexo que se multiplica numa cortina de cores e formas variadas.
É assim esse sujeito do Catatau, é assim Cartesius. Esse que tinha olhos de pólvora, olhos carnívoros e de carne, olhos vidrados e de lentes, olhos esfumaçados e expansivos, olhos cadenciados e vazios, olhos de narciso e de vedação. Cartesius, olhos de surpresa e fracasso, olhos de perturbação do pensar, do ser branco e europeu. Cartesius seus olhos são pontiagudos! Tão enigmáticos: são barrocodélicos, como tratou Haroldo de Campos em um ensaio sobre o livro de Leminski.
Pudera e estava Renatus Cartesius aqui tropicalmente perdido com as mãos carregadas, numa sua luneta e noutra um cachimbo de ervas. Parecia pouca coisa, mas tornaram-se tantas, exaltavam o peso das mãos. Mãos pesadas que carregavam ambição, medo, confusão, e também leves, vazias, onde foram o peso de seus pensamentos?
Cegaram-se, morreram de sede e fome, miscigenou junto ao calor e cheiros, cores das aves e animais de figura monstruosa, assim como todo esse sentir monstruosamente além de existir. É você não é mais o mesmo! Por que ainda o esperas? E se Artyczewski chegar e não o reconhecer mais? Nem você se reconhece mais. Tens razão, “Este mundo é o lugar do desvario, a justa razão aqui delira”, esse mundo parece as avessas, desequilibrado, ilusório. Faltam-se as lentes supra sumo do pensamento, da razão. Occam aproxima-se traz medo, esperança, duela ideias, línguas, acelera o sentir, diminui o pensar ou seria o oposto? Aí Renatus! Você está tomado pelo oposto, está em várias formas, em vários caos. Segundo as palavras do próprio autor: “Occam ocultus, Occam vultus, Occam, o bruxo. Occam torceu a sinalização. Occam disfarçou as peripécias. Aonde vai com tanta pressa? Vou a toda Pérsia, vai depressa. Occam vê o óbvio. Deixa o óbvio ali. Pensa uma oração e o óbvio desaparece. Occam não pensa nada, se nadifica e falta.”
Entre o caos e o nada devaneia e persiste na falência do ser. Ainda dá para ver entre lentes e bem-te-vis? “Há coisas que não são para ver. A ver, veiamos” Não tenha medo de chegar mais perto, de arruinar o olho, de ser aquilo que inteiramente o vem a ser. “Um corpo é muito osso para um olho que quer crescer sem mãos para o confundir. Tem que ver como tem que ser, intervalos de ilusão de ótica para as evidências certas”. Tens que arruinar o olho com a demora do olhar, com a inquietação de deixá-lo levar-se a provocação e ao monstro. Tornar-se isca do próprio olhar, do próprio objeto de visão.
É homem nutrido de letras de olhos noturno e diurno, que tropeçou em vírgulas, perdeu-se nas reticencias, prendeu-se em parênteses, enfrentou as interrogações, encaleceu as mãos de páginas. Tome-se por esse empirismo radical. Agora são elas que te engolem, tecem freneticamente a cor do papel, do seu papel! Ganham combustível, fogem da sua gramática, do seu léxico, trabalham polissêmicas, ambíguas e inovadoras. Embaraçam-se entre o português, latim, polonês, holandês e dão o nó na linguagem popular. Torna o olho mais denso, maior, longe da maquina-bicho, aproximasse de o ser inteiro. Inteiro desse chão, vasto e seu. “Fui eu que fiz esse mato: saiam dele, pontes, fontes e melhoramentos, périplos bugres e povoados batavos. Eu expendo Pensamentos e eu extendo a Extensão! Pretendo a Extensão pura, sem a escória de vossos corações, sem o mênstruo desses monstros, sem as fezes dessas rezes, sem a besteira dessas teses, sem as bostas dessas bestas. Abaixo as metamorfoses desses bichos,— camaleões roubando a cor da pedra! Polvos no seco: no ovo quem deu antes no outro, uma asa na linha do galho ou um pulo em busca de agasalho? Não sabem o que fazer de si, insetos pegam a forma da folha; mimeses.”
Olho o olhar de Renatus Cartesius e como não se deixar tomar pela linguagem, pela embriaguez textual e sensorial? Como não sentir a autonomia das palavras, o som do martelo as pregando com vivacidade e cor em um papel branco e hostil? Elas criam-se, ditam suas próprias regras, miscigenam o papel, cor, línguas, neologismo, filosofia, ditados populares, concretismo e tropicália. “Pela ou na rama, voce mettalica longisonans, a araponga malha ferro frio, bentevi no mal-me-quer-bem-me-quer. A dois lances de pedra daqui, volta e meia, dois giros; meia volta, vultos a três por dois. De onde em onde, vão e vêm; de quando em vez, vêem o que tem. Perante o segundo elemento, a manada anda e desanda, papa e bebe, mama e baba. Depois da laguna, enchem a anterior lacuna. Anta, nunca a vi tão gorda”. Leminski em seu Catatau trabalha com a linguagem de forma poética, ritmada que nos insinua a ler em voz alta, como uma ciranda frenética de palavras, vozes e pensamentos. É esse olhar na linguagem como objeto mais importante que a própria natureza, a própria realidade é que transcende, perpassa, resiste e persiste na literatura do Catatau de Leminski. Criando-se uma leminskíada barrocodélica, como Haroldo de Campos bem nos disse. Talvez não seja nem isso, nem aquilo, talvez devesse deixar dizer, virando-se entre a linguagem, sem mapas, em olhares.
Jaque N.